terça-feira, 13 de março de 2007

O mesmo, no entanto, diferente - Ensaio sobre Sêpsis, de Geraldo Iensen

Capa e contracapa de Sêpsis, projeto do designer Edu Rodrigues


Sêpsis é encantador. E assustador. Não por acaso essas duas palavras rimam com dor...
O tom desiludido, um tanto perdido, faz lembrar Kerouac – quando este acreditou que a saída era fugir. Aliás, fugir é um verbo bem conjugado ao longo do texto. Não porque José Maria parece fugir de um (im)provável crime, não porque tudo começa no Rio de Janeiro, vai a Johannesburgo (antes aterrissa em Londres), passa por Brasília, transita em São Luís, passeia por Belém e se encerra num rio perdido no meio da Amazônia – nada disso. A fuga de José Maria, esse anti-herói urbano, vai além do que sugere o sentido clássico da palavra e nos leva a um conceito, por vezes, bem mais usado na sucessão dos dias: o da escapatória, do subterfúgio. Um maluco fugindo de seus instintos, sejam sexuais ou, quem sabe até, homicidas. Mas a fuga é apenas conseqüência, numa vida afundada em despautérios...
Quando o narrador-José Maria diz que “o que impele o mundo é o mundo passado, a dificuldade de aceitar o desconhecido, o esquecido, a escuridão”, ele oferece a chave do mistério que move sua vida. Um mundo já esmaecido, que pode ser apenas o passado ou transformar-se naquilo que é conveniente a quem conta. Conveniência talvez nem fosse a palavra adequada, porque a relação poderia ser outra, como aquela eternizada no dito popular que afirma que “o pior cego é aquele que não quer ver” ou, pelo menos, prefere enxergar de maneira diferente.
Chegando a esse ponto, fica inevitável a referência a um clássico universal, especialmente pelo perfil (psicótico?) dos personagens centrais: Dom Quixote, da província de La Mancha, região central da Espanha do tempo das navegações, que tinha como escudeiro fiel, o ativo Sancho Pança. Aqui cabe uma pergunta. (E mais uma comparação: a psiquiatra Ana Luzia parece acelerar o surto em José Maria e – embora o bem intencionado Sancho não tenha intervindo nas decisões loucas de seu amo – os dois parecem exercer uma função biunívoca nestas duas histórias). Agora sim, a pergunta. Quem é mais louco: Dom Quixote, por lutar com moinhos de vento, ou Sancho Pança, por concordar com as sandices de seu amo?
Será que Zé Maria era louco mesmo? Afinal, sua cabeça apenas trabalhava sobre fatos, lembranças, esperanças não alcançadas... Coisas que afligem a cabeça de qualquer “normal”. Uma esposa estranha, uma família estranha, uns hábitos estranhos, um irmão estranho – e gêmeo! – o adorado João Maria, aquele que, há dez anos, dava “duro” no Senado para sustentar os dois. Seria mais um personagem nesta quadrilha, que não é a do Drummond, mas também termina em dor... João Maria seria Dulcinéia, aquela a quem os quixotes esperam um dia reencontrar – ainda que apenas idealizada?
José Maria é um personagem que lembra a viúva-negra, tranqüilamente fiando sua teia fatal... a qualquer um que se ache corajoso o bastante para contar suas agruras, suas decepções, seu desapontamento com este mundo errado, tão inóspito para corações românticos e afeitos a rotinas. Mas ele não: Zé Maria é contrário a qualquer hábito, só não àqueles que não possui controle – a falta de sexo, por exemplo... Ele não admite homens que abram mão disso por mulheres tolas; não admite que homens deixem para trás uma coisa que ele [Zé Maria] nunca vai poder experimentar. Não como o gêmeo João Maria. Não como qualquer um consideraria quando já não houvesse outra forma... Seria a inveja o mal deste homem?
O caminho de José Maria parece correr atrás de epifanias – um encontro com Deus. Nem que seja o Deus interior do próprio personagem, este ser frio e cruel, que não planeja nada, mas acaba com tudo. Aliás, este é um personagem diferente do que Iensen tem escrito, embora muito dos outros se veja nele: um desenraizamento, um desterro completo. E aqui se cai no que é muito recorrente na literatura deste desiludido. Uma mágoa aparente, inesgotável, que atravessa toda a história (todas as histórias) contada por ele. Decepção, desilusão. Mas esta história traz uma fuga à sua já distinta filosofia. Para Zé Maria não existe a escolha entre miséria e ilusão: tudo já é miséria transformada em des-ilusão (ou será o contrário?). Caminho estranho para este escritor enraizado – ao contrário de seus personagens – em suas certezas. Aliás, ele diria “a certeza é uma prisão”. Então, que venham os exercícios de liberdade!
Encantador. A prosa de Iensen, nessa minha mania ridícula de explicar tudo – ai, os positivistas... – eu nomearia como “prosa poética”. Uma prosa pouco prosaica e muito poética. Um narrador consciente, habilidoso; tanto com as palavras, quanto com as idéias. Um narrador que quer participar da história, mas que também parece se conformar em simplesmente narrar tudo o que está lá para ser contado – pelo menos de vez em quando. Mas me retiro da questão formal porque o que falo é sobre a impressão de leitura, de leitora. Ele que continue escrevendo com tanto desencanto, mas sempre encantando quem o lê, abusando dessa pinta de incompreendido, porque, no fundo, é isso que vale à pena mesmo, como sabiamente aconselha Cioram.